segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Versos ao Vento

Batata da Bia: Poeta de rua conquista o coração de uma menina com suas rimas.




Não segurou. A fila no banheiro feminino era grande e Melina tinha pressa. Entrou no banheiro masculino mesmo e quando ensaiava se equilibrar para enquadrar o vaso sanitário, notou alguma coisa escrita na parede.

Foi como pedras jogadas no chão:
Barulhos e alguma coisa de brilho.
Depois passou e ficou por lá.
Não fez nada,
Nem cócegas, nem dor.
Não guiou o caminho
Nem voltou.
Fiquei inerte e ocupado apenas comigo
Foi mais uma que não tinha que ter sido
Melhor:
Ela foi sem ter sido.
Pedra e dor.


Engoliu seco. Alguma coisa naquele poema incomodava. Bateram na porta enquanto ela urinava. Tentou decorar o poema. Nem tinha tempo. Deu a descarga e saiu, incomodando os homens que esperavam na fila do banheiro. Nenhum gostou de ver mulher ali. Toda mulher demora mais tempo do que qualquer homem para utilizar o banheiro. Melina ainda tinha se distraído por lá.
As mesmas pessoas continuavam com os mesmos assuntos na mesa do bar. Pouco depois passou um sujeito esquisito vendendo livros seus. Melina contrariou todo mundo e quis folhear. Absolutamente tudo muito ruim.
Foi embora pra casa sozinha. Ficou olhando pros bancos e pros muros procurando outros versos. Viu muitos corações rabiscados. Adesivos, nomes, xingamentos, reivindicações, desenhos, declarações de amor. Nenhum poema.
Passou procurando no chão e nas árvores, mesmo sabendo que não ia encontrar nada.
Dormiu com aquilo na cabeça. Acordou atrasada e já nem lembrava. Pegou um ônibus pra ir trabalhar e reconheceu a caligrafia de um texto pequeno escrito num dos bancos.

Essa coisa de ligar não é comigo
Eu sou de vôo
Não sou de abrigo

Incomodou como o outro poema. Esse, inclusive, Melina achou muito ruim. Podia nem ser do mesmo autor, mas ela sabia que era homem e que tinha alguma coisa. Melina tinha certeza que conhecia aquilo.
De noite, o mesmo bar e os mesmos amigos. Um homem de preto entrou e se sentou na mesa ao lado. Melina já o tinha visto. Era muito alto, olhos castanhos e alguma aura de mistério na barba mal feita.
Ficou olhando. Ele tinha alguma coisa de peso e riso ao mesmo tempo. Alguém na mesa perguntou se ela o conhecia e Melina disse que não. O homem de preto se levantou e foi na direção do banheiro.
Melina foi atrás.
Ficou na fila do banheiro feminino pra disfarçar, mas ele no banheiro demorava como mulher. Ela continuava olhando quando ele saiu. Ele cumprimentou como se a conhecesse. Ela ficou sem graça. Sorriu.
Num outro dia, no mesmo bar, Melina bêbada voltou ao banheiro masculino. Outro poema na parede.

Quando essa menina olha
Parece que tudo brilha
Eu fico sem fazer nada
Pra não cair na armadilha

Melina bêbada viu um poema do lado do outro e achou que estavam com a mesma caligrafia. No dia seguinte, entretanto, não confiou em si mesma. Esqueceu-se dos poemas e dos olhares do homem de preto que ela tinha tido vontade de morder.
Entretanto, dois pontos depois de ela ter subido no seu ônibus habitual, entrou o cara da outra noite com os mesmos olhos castanhos e alguma coisa de charme. Ela não deixava de olhar. Ele pediu pra sentar ao seu lado.
Comentaram o calor daqueles dias e se mantiveram em silêncio. Melina tímida só podia pensar que a voz dele era muitíssimo bonita. Ele desceu antes dela. Ela reparou um poema na cadeira. O mesmo poema ruim do outro dia.
Pegou o mesmo ônibus pra voltar. O homem de preto já estava lá. Ele sorriu pra ela e ela sentou-se ao lado dele.
- Eu não queria ter que entrar nesse mérito desse jeito, mas você vem sempre por aqui? – ele perguntou com um sorriso sacana.
- Só quando trabalho. – ela respondeu.
- Onde?
- No centro.
- Com o que? – Ele perguntou e Melina nem ouviu. Tinha se distraído com um outro poema escrito no banco daquele mesmo ônibus.

Só não consigo agüentar o cheiro
Antes não tivesse sentido
Vou voltar pro apartamento
Permanecer sem partido
E guardar as minhas tralhas
Em cantos bem escondidos
Pra que ela não saiba
Que eu quero tudo
E nada tem sentido.

- Não é a primeira vez que leio algum poema escrito nessas cadeiras de ônibus. Aliás. É o segundo que pego escrito nessa mesma linha. Caligrafia parecida. Um pessimismo...
- Como é seu nome mesmo? – Perguntou o homem de preto.
- Melina.
- Carlos.
- Nome de poeta.
- Não se engane. – ele disse em tom de deboche.
- Não me engano. – ela retrucou, sorrindo.
– Mas o que tem a ver meu nome com os poemas?
- Nada.
- Eu mesmo nunca tinha notado.
- Tem um aqui. – ela apontou e Carlos leu.
- O que você acha?
- Não sei. Me incomoda. Aliás, incomodam. Peguei mais dois um pouco parecidos no banheiro de um bar que eu costumo freqüentar. Aliás, foi onde eu te vi.
- Você repara em coisas que ninguém repara.
- Nem tanto. Qualquer um que ficasse de costas pro vaso veria os poemas.
- Mas eles estavam no banheiro masculino!
- O que você está falando de mim, então? Eu reparo coisas que ninguém repara, mas você também leu.
- Não.
- Então não faz sentido você saber do que eu estou falando.
- Meu ponto. Até mais tarde. – ele desceu e ela ficou com cara de tacho.
Se aprontou muito bonita com vestido preto e salto alto. Foi a pé para o bar de sempre e nem avisou a ninguém. Se sentou sozinha. Acendeu um cigarro. Carlos chegou em dois minutos.
Nem pediu licença. Sentou-se com ela.
- Está muito bonita, Melina.
- Obrigada.
- Eu queria te mostrar uma coisa.
- Melhor não.
- Por que?
- Está com cara de confissão e eu não gosto de confissões, especialmente quando são feitas por desconhecidos.
- Você não é dura assim.
- Como é que você pode saber?
- O que te incomodou nesses poemas?
- São ruins.
- Só isso?
- São vários e eu acho que são da mesma pessoa.
- Só isso?
- A pessoa que escreve esses poemas tem medo de tudo. É isso que incomoda.
- Por que?
- O que te faz se interessar tanto por esse assunto? É você o autor dos poemas?
- Você disse que não gostava de confissões.
- É você o autor.
- Sou sim.
- Bom, Carlos. Eu acho que vou embora.
- Melina, eu acho que você devia ficar. Comigo.
Ela ficou parada olhando pra cara dele e procurando algum indício de poemas. Ficou procurando o pessimismo que tinha notado e o muro que devia ter em volta de um autor muito pouco misterioso. Ela queria alguma coisa diferente, não sabia muito bem o que. O que ela sabia é que aquele poeta medíocre que fugia o tempo todo de todas as paixões mexia com mais coisas nela do que ela mesma queria.
Por um momento, esqueceu que ele era alto e bonito. Esqueceu que tinha olhos castanhos ou que já tinha ido atrás dele. Na sua frente, Carlos parecia um papel em branco querendo ser escrito.
Ele tocou as pontas dos dedos no antebraço dela e acariciou. Ela sorriu. Ficaram em silêncio e ele foi tomando coragem para se aproximar. Se beijaram.
Acordariam na casa dele.
Quando Carlos acordou, só tinha cheiro de Melina no travesseiro e nenhuma sombra dela por perto. Ficou meio bambo e foi andando pela casa procurando algum pedaço de mulher, alguma sobra.
Tudo o que ele ainda tinha era um pedaço de papel grudado por ela na geladeira.

Quem sabe um dia ainda te pago um cinema?
O Sol nasceu meio torto, tenho quase certeza.
Talvez não seja certo sentir filetes de carne entre os dentes e pedaços de dentes na boca.
O Sol nasceu fazendo inchar.
Tenho certeza que o céu era o mais bonito de todos e o mar também.
Não gosto de escuro, mesmo. O céu parecia feito de diamante.
Já chamei as amigas pra sair.
Quem sabe não tomamos um vinho e conversamos fumando um cigarro caro e fino que não combina com nenhum de nós dois?
O mesmo cigarro por que somos dois nadas entre o céu, o Sol e o mar.
Quem sabe não nadamos e sentimos as carnes frias e sem pedaços.
Talvez lavemos a alma ao invéz de tentarmos nos machucar.
A próxima dança não deve ser lenta.
Você deve se aproximar, segurar-me pela cintura com força e sem dó.
Feito isso, vou onde você me levar, com as pernas no ritmo das suas.
Segurar pela cintura e guiar-se pelo cheiro, grave bem.
Dois nadas entre céu, Sol e mar.
Contradança sem nenhuma técnica de salão.
Filetes de carne.
Teria dado certo. Quem sabe?
O Sol já nasceu . Não tem mais escuro pra nos aquecer.
M.


Minha batata: continuar essa história, com os mesmos personagens e uma música-tema que tenha vindo de filme de comédia romântica.

16 comentários:

Unknown disse...

Gostei muito, e por favor continue ;)

Lari Bernardi disse...

Maravilhosaaa!!!

Quero um Carlos pra mim... *-*

;*

luisfilipe disse...

me prendi.

Nayara .NY disse...

A poesia entrelaçada
em nossos corações
desfigurados em figurações!
É tão claro e condizente!
Digo que gosto somente!

Que nunca se acabe!

Caio Sica Lamas disse...

Malditos poetas mediocres de olhos castanhos.

Ana disse...

Eu acho tudo isso muito mágico, como conhecer o autor de um poema escrito no banheiro masculino - e se envolver com ele !

Adorei essa história :) E adoro esse vídeo também !

Darshany L. disse...

ficou perfeito!
perfeito.

Anônimo disse...

Que bonito Dias!
Aii continue... hauhauhauauhuhau
FInal Ana Carolina! Bacana!

Maah :) disse...

Mais que perfeito. Li até mais de duas vezes!

beeijo

Tatiana Maisan disse...

Me prendi [2]
Putz, muito bom. Muito bom meeeeeeesmo!
Voltarei :D

Lari Bohnenberger disse...

Muito bom!
Tô louca pra ver a próxima continuar a história!
Bjs!

bia de barros disse...

banheiro! quem diria...
é o que mais gosto nos textos daqui, os 'elementos surpresa'!
vc parece se divertir tanto com isso que até nos diverte. linda *-*

*;

Aline Dias disse...

era isso que vc queria, Bia?

Compondo o olhar ... disse...

amei!!! lindo msm....

dá uma passadinha no meu blog. sei q vai gostar...

abraços

anareis disse...

Estou fazendo uma campanha de doações para criar uma minibiblioteca comunitaria na minha comunidade carente aqui no Rio de Janeiro,preciso da ajuda de todos.Doações no Banco do Brasil agencia 3082-1 conta 9.799-3 Que DEUS abençõe todos nos.Meu e-mail asilvareis10@gmail.com

Someone and Anyone disse...

muuito perfeito isso *-*

Someone ;*